Hoje, meu trabalho me leva a
conhecer diferentes municípios do Nordeste do Brasil e, com certa frequência,
cidades muito pequenas, indefinidas entre o rural e o urbano, com populações
menores de 50 mil habitantes. Há algum tempo venho com vontade de voltar a
escrever e durante minha última viagem percebi que poderia ser interessante
relatar/dialogar sobre essa experiência.
Meu primeiro relato é da viagem
feita a Santa Cruz dos Milagres, no Piauí. Uma cidade com uma população que não
chega a quatro mil habitantes, instituída em 1992 e com grande tradição de
romaria. As peripécias da viagem começaram logo no seu planejamento. Como
momento de trabalho, minha tarefa foi acompanhar um encontro de formação de
agentes sociais de esporte e lazer. Nesses casos, sempre procuro o formador ou
a formadora para pegar carona no transporte da prefeitura que tem obrigação com
eles (mas não comigo, já que no meu caso é o Ministério que arca com minhas
despesas). Por experiência, fiz reserva dos voos com um dia de diferença antes
e depois a formação. Minha colega, porém, teve uma leve “falha de alteridade” e
disse que não poderia me esperar (porque o voo dela chegava antes do meu). Com
isso, abstraí a chateação e comecei a encarar como uma experiência antropológica.
Na segunda-feira, dia da viagem,
acordei sem muita disposição. Fechei a mala, me arrumei e fui para a portaria
do meu prédio. Para minha surpresa era o porteiro da noite que estava lá (ele
já deveria ter ido embora a cerca de uma hora e meia) e me explicou que o
porteiro do dia havia se atrasado mas estava chegando. Jamais imaginei que essa
diferença poderia ser significativa. Entretanto, o porteiro do dia tem mais
experiência em pedir táxis do que os da noite, pelo menos no meu prédio. Com isso,
me garanti que nas últimas vezes (umas três pelo menos), os táxis chegaram com
no máximo cinco minutos. O motivo é por ter um ponto de táxi muito próximo, que
os motoristas colocaram um telefone específico para ligarmos direto para aquele
ponto. Outra questão, é que para aperfeiçoar esses pedidos de táxi, que
refletindo agora devem ser constantes, o zelador e um dos porteiros do dia
baixaram aplicativos em seus telefones para pedir táxi e com isso levam um
tempo médio de dois minutos. Bem, mas era o porteiro da noite que estava lá.
Ele não tinha aplicativo no celular e nem o telefone do ponto de táxi, e ao meu
pedido respondeu ligando para um disque-táxi qualquer que informou que levaria
quinze minutos. Olhei o relógio e pensei: “Eu tenho algum problema de memória”.
O fato é que este é meu segundo
trabalho em que faço muitas viagens. Aperfeiçoei minha habilidade de fazer
malas, organizar necessaries, decidir
o que levar ou não para cada lugar, saber que alguns elementos são fundamentais
-como casaco e sandália havaiana - independente de onde você vá. Entretanto, na
antecedência para pegar o avião sempre tenho um lapso de memória que me faz
esquecer todos os perrengues que já passei para pegar (e/ou perder) voos. Com
isso, o atraso do táxi agravou o fato de eu não ter sacado dinheiro no banco e
não ter feito o checking pela
internet.
Depois dos quinze minutos, o táxi
chegou. Se não me falhe a memória, Seu Manoel. Avisei que estava atrasada.
Felizmente, hoje moro a 10 minutos do aeroporto (com trânsito). No caminho,
tive a ideia de transferir o dinheiro para ele pelo tablet. Sugeri:
- Seu Manoel, queria saber se
posso lhe pagar por transferência¿
Ele pergunta desconfiado:
- Como é isso¿
- Eu estou com o tablet. O senhor me dá o número da sua
conta e eu transfiro aqui pelo tablet
da minha pra sua.
Quando falei “número da conta”
percebi já a reação negativa e ao terminar a frase veio o “Não, não”.
Avisei então que teria que me
esperar para que eu sacasse o dinheiro. Após o meu “Certo¿”, seguiu um silêncio
que preencheu o carro de ´Que jeito¿´.
Chegamos ao aeroporto. Ele ficou
esperando. Fiz o checking num guichê
sem despachar a bagagem. Desci, saquei o dinheiro no primeiro caixa eletrônico
que vi, subi de novo e segui pela porta de saída mais próxima. Avistei um
guarda questionando Seu Manoel. Percebi que deveria chegar rápido. Dei uma
corrida e já cheguei gritando “Sou eu, sou eu”. Seu Manoel sorriu com alívio e
o guarda seguiu em sua moto.
Voltei para despachar a bagagem.
Não estava sozinha. A atendente foi taxativa: “Embarque imediatíssimo!”. Direto
para dentro do avião, voo tranquilo, programas de empresas sustentáveis na TV,
pausa em Fortaleza. No segundo trecho muito riso e diversão com o seriado “Meu
passado me condena” (e também muitas lembranças).
Chegando ao Piauí, segui de táxi
para a rodoviária (R$32,00). O taxista, Dunei, foi respondendo minhas perguntas
de turista. Cortou caminho pela periferia e terminei exprimindo minha opinião
sobre a falta de uma intenção política de abrir o Piauí para o mundo ou pelo
menos para o restante do Brasil (que se reforçou ainda mais nesta minha vinda).
Tudo já começa na chegada ao aeroporto. Um aeroporto de capital com uma
estrutura muito precária. Você desce diretamente na pista, que só tem um portão
de entrada e um de saída; duas esteiras de bagagem para dois, três voos numa
sala reduzida. Ao desembarcar você se sente “cuspido” pra saída. Não existem
guichês de turismo. Um mapa do Piauí¿ Nem pensar. A única empresa de táxi tem
fila de espera. As lojas ficam imprensadas com os guichês de despacho. Soma-se
a isso, a informação trazida pelos jornais: o Piauí tem outro aeroporto, em
Parnaíba, no litoral e, pasmem, foi feito com recursos do Governo Federal,
possui pista com dimensões para voos internacionais e não existem linhas
comerciais. Isso poderia até ser visto como algo bom, se houvesse um trabalho
de fortalecimento e valorização da cultura local (ainda assim questionável).
Mas este realmente não é o caso. Chegamos aqui e poderemos sair sem nenhuma
noção da riqueza deste lugar e deste povo. Claramente, a vontade política é de
manter as pessoas longe daqui.
Ao chegar à rodoviária, comprei
imediatamente minha passagem (R$34,00, o das 15h) e fiquei ciente de ter longas
três horas até o horário do ônibus. Almocei por ali e fiquei no desembarque
vendo o tempo passar, o Bonitão chegar e ir embora.
Comi um chocolate e embarquei.
O ônibus não tinha
ar-condicionado. Ao entrar percebi que uma senhora ocupava meu lugar. A pessoa
ao lado dela ao perceber meu olhar de “este lugar é meu”, falou aleatoriamente
“ah, nosso número era ali na frente, mas já tinha gente”. Segui sem questionar
e me sentei na cadeira atrás dela. Mais espaçosa e com uma imensa janela que
abri sem dó. Fui com o vento no rosto durante boa parte das quatro horas de
viagem. Na maior parte do tempo, conversei com a paisagem. Em outros momentos
cochilei um pouco e comi pitombas.
Cheguei à cidade já era noite.
Perguntei três vezes ao motorista: “a rodoviária é aqui¿”. E ele respondeu três
vezes: “É aqui que o ônibus para”. Da última vez, completou: “Aqui é a Praça do
Olho D´água, se for voltar amanhã espere aqui”. Lugar mal iluminado, com um
muro de um lado e barracas fechadas de outro. Uma mulher aguardava comigo.
Liguei para Rosa, a responsável pelo convênio que vim visitar. Em pouco tempo
ela chegou, de carro, para me levar. Na pousada, Dona Helícia me levou para o
quarto (R$ 40,00 com ar-condicionado). Arregalei os olhos e acho que Rosa
percebeu. Ali era uma verdadeira inundação de ácaros. E eu sou alérgica.
Desejei-me sorte e entrei. Rosa gentilmente me ligou perguntando se eu queria
ficar na casa dela. Recusei e agradeci.
Na manhã seguinte (e ao longo dos
três dias que estive lá) pude olhar Santa Cruz dos Milagres com mais atenção. A
cidade é das menores que já visitei. Suas casas demonstram a mudança recente em
sua estrutura: muitas casas de tijolos ainda aparentes, cerâmicas brilhantes
recém colocadas, ruas de paralelepípedo (nos relataram também como algo
recente, pois antes era barro). As inúmeras barracas ao redor da pequena Praça
do Olho D´água sobressaltavam, principalmente por serem lembrancinhas do local.
A explicação está no turismo religioso, forte na região. Segundo as gestoras,
em tempos de romaria (três vezes ao ano), a cidade passa dos seus quase 4.000
para próximo de 40.000 pessoas. Isso explica a quantidade de casas com o nome
de pousada ou hospedaria.
Não cheguei a conhecer a igreja
ou santuário, e certamente isso agregaria muito ao meu sentimento sobre a
cidade. Mas o que não mudaria é a sensação de que aquela romaria não era para
os moradores a sua identidade. Parecia-me, naquele momento, uma identidade
forçada pelo caráter enorme do evento. Claro que isso não deve ter sido sempre
assim. Mas os relatos dos moradores sobre a festa sempre se remetia a “eles” e
não a “nós”. Mas, como não tive contato com tantos moradores, pode ser apenas
uma, de tantas impressões... (das políticas públicas vou deixar para meu
relatório ou outro post..).
Os dias aqui foram de trabalho,
acompanhando a formação de agentes e, à noite, as novelas. Comemos um peixe
delicioso, que não imaginaria encontrar aqui. Tambaqui, bemmmmm assado, tão
assado que algumas espinhas eram crocantes e você comia junto. O grupo muito
comprometido, deu gosto de ver. O retorno de carro foi mais rápido.
Como meu voo seria apenas no
outro dia, combinei para encontrar um amigo piauiense, sociólogo de formação,
mente e coração. Proseamos muito, com direito aos habitus de Bourdieu e às cidades imaginárias, de Eli Veiga – que eu
preciso urgente ler. Ele me acolheu na casa de sua irmã e sua família me
recebeu com franqueza. A esperta "Manoela Amanda", como gosta de ser chamada a pequena Maria Fernanda, deu todo o charme da minha visita. No dia seguinte, uma longa aula de um campo
(bourdesiano) novo que estou buscando compreender: o meio rural. Campesinato,
desenvolvimento sustentável, desenvolvimento territorial, agroecologia foram constantes. Ah! E não poderia deixar de falar de uma ferramenta nova, magnífica dica: Videoder, um programa que baixa
vídeos da internet, para android (recomendadíssimo!). Almoçamos uma comidinha
caseira maravilhosa e ele me levou para comprar cachaça no supermercado
(muitoooo mais barato!). Depois me deixou no aeroporto. (Samu, realmente não
sei como agradecer J).
Voltar para minha terrinha foi
ligeiro, principalmente com um compromisso muito especial me esperando: reencontrar os amigos de longa data, dos tempos de colégio, onde tudo era intenso e cheio de vida.
A visita a mais uma cidade
imaginária terminou. A sensação que fica ainda é (e se torna cada dia mais) de reconhecer como é complexa
a nossa sociedade. E de que ainda preciso ler (e viver) muito para compreender
as falsas dicotomias de oposição criadas no discurso e na prática, como rural e
urbano, que ocultam o continuum que
essas diferentes realidades formam e com cada vez mais interdependências nesses
tempos de globalização.